O problema do estupro na ficção

Antes de qualquer coisa, como o título já diz, TW de estupro.

Ultimamente tem se falado muito da representação feminina na ficção, o público tem ganhado mais força e exigindo mais e mais das mídias que parem de colocar as mulheres em situações machistas. Com isso, um tópico que foi muito falado foi o estupro que essas personagens sofrem e a representação que é feita do assunto.

Estupro, infelizmente, é algo jogado para baixo do tapete, inclusive a Superinteressante desse mês aborda o assunto na matéria principal falando exatamente como pouquíssimos casos são levados a sério e quase nunca resultam em alguma condenação. Além de tudo, é um crime que acontece com muitas mulheres, entre outros tipos de abusos.

Queria falar sobre o assunto desde a época que estava passando a quinta temporada de Game of Thrones, não só pelo erro da série em si, mas também pela reação de algumas pessoas ao verem certas cenas. Mesmo que seja na ficção, estupro é um assunto muito sério e as representações da mídia afetam muito a vida das pessoas, por isso usar o argumento “é só um filme/série/livro/jogo/etc” é muito raso, ainda mais com um assunto como esse.

O estupro ocorre quando alguém se força sexualmente em uma pessoa sem o consentimento desta. Muitas pessoas cometem o erro de só visualizar como estupro aqueles casos em que pessoas são pegas na rua a força, mas esse tipo na verdade é a minoria. Na maior parte dos estupros, a vítima conhece o agressor.

  • Deixou a moça bêbada pra ela ficar “fácil”? Estupro
  • Foi em cima dela quando ela estava dormindo? Estupro
  • Namora com ela há algum tempo e usou o “você não me ama” para convencê-la? Estupro
  • A moça desistiu no meio e você disse que agora tem que terminar? Estupro

A vítima é sempre “culpada” pelas pessoas pelo que aconteceu. Estava muito bêbada, estava com saia muito curta, ninguém mandou confiar, ninguém mandou sair com tantas pessoas, ninguém mandou andar a noite sozinha… Estupro é um medo constante das mulheres, mas sempre haverá um homem cis para falar que “é bobagem”, “você está louca” entre outras coisas. Em uma aula da faculdade, lembro que enquanto esperávamos a professora, as mulheres discutiam como se proteger de um possível ataque, até que uma delas parou e disse “É completamente absurdo que todas aqui já tenham criado métodos para se defender disso”. E é mesmo. Ah! Se você é daqueles que compara medo de ser estuprada com medo de ser roubada, por favor retire-se do meu blog.

Tá, mas o que isso tudo tem a ver com ficção? Assim como tudo na sociedade, as mídias refletem o que acontece no cotidiano e o cotidiano reflete o que acontece na mídia. Quando venho aqui em vários textos pontuar como representatividade é importante, estamos falando disso também.

O que acontece muitas vezes é que o estupro é usado para desenvolver a personagem, porque na cabeça de vários homens cis que criam essas histórias, esse é o único jeito de criar uma personagem feminina “complexa”. Isso quer dizer que todo o estupro em ficção é ruim? Não. Acredito que quanto menos melhor, mas se há uma crítica por trás ou algum ponto importante na história, aí já fica diferente. Mad Max Fury Road faz isso bem, as esposas são vítimas de estupro e isso é usado para fortalecê-las, criticar a sociedade e o estuprador. Ainda melhor: As cenas de estupros nunca aparecem, todos entendem perfeitamente e não precisamos ver. Sempre digo que se o escritor não sabe fazer uma mulher complexa sem colocar uma cena violenta de estupro na história, esse cara não é um bom escritor.

Aí vamos para o exemplo que me fez querer escrever sobre o assunto: Sansa Stark. No sexto episódio da quinta temporada de Game of Thrones, Sansa é estuprada por Ramsay. Não, ela não “aceita”, não é “sexo violento”, é estupro. Ela obviamente não estava consentindo, havia vários indícios no episódio que ela não queria estar ali e que estava apavorada com Ramsay, mas de acordo com certas pessoas (a maioria delas homens cis! Oh! Que surpresa!) não foi estupro porque ela “não lutou” e “eles estavam casados”. Estupro acontece dentro do casamento também, viu? O casamento não é sinônimo de “posso fazer sexo com minha mulher quando eu quiser independente da vontade dela”. Além disso, vocês acham mesmo que Sansa não teria sofrido muito mais se tivesse resistido? Ela sabia disso. E sinceramente, no episódio seguinte quando ela estava toda machucada e infeliz, vocês ainda acham que não era estupro? Sério? Não é exagero, não é pra gente “se acalmar”, isso é uma agressão gratuita que em nada acrescentou na personagem dela. Pior, foi feito para desenvolver um homem cis, Theon. O sofrimento da mulher nem é dela, é do cara, porque “Coitado, teve que assistir”.

Ainda em Game of Thrones, na quarta temporada temos o estupro de Cersei. Ela diz que não, mas não luta contra Jaime e as pessoas dizem que “ela consentiu no final”. Forçar a mulher até ela consentir é estupro, não é não. O pior de tudo foram os produtores dizendo que não foi estupro, além da cena ser completamente fora do contexto dos personagens, quando você tem uma cena dessas e os responsáveis por ela falam “não foi estupro”, as pessoas vão acreditar, não subestime o poder de uma série. Aí o cara resolve fazer igual e não se toca de como isso é horrível para uma mulher.

Hentais também são conhecidos pela grande carga de estupro. Eu sei que ninguém vai assistir hentai por representação (caso você esteja se perguntando, hentai é anime erótico), mas há um conteúdo muito absurdo neles. Até nas categorias com “consentimento” (porque veja bem, há categorias de estupro!), muitos deles começam com a moça dizendo não várias vezes, o cara vai forçando até que ela se “deixa levar” pelo momento e acaba amando. A maioria das pessoas que assistem hentais são jovens, então você passa a mensagem de que “se você forçar um pouco ela aceita” para quem está assistindo e está numa idade de formação de opinião, e nem vou entrar aqui nas outras milhões de problemáticas do hentai.

Quando falamos de estupro e pedofilia, o assunto piora. Lolita é um livro que obviamente fala de um pedófilo que está obcecado por uma menina, não tem como ler o livro e ver esse homem como o “bonzinho” e o livro problematiza exatamente os pensamentos de Humbert. Aí as adaptações de filmes e capas de livros colocam imagens de uma Lolita mais velha e “seduzindo”, porque afinal de contas se ele quer, ela o provocou. É absurdo que a pessoa que cuida da publicidade dessa história tenha lido o livro e achado que seria uma ideia interessante colocar uma “adolescente sedutora”, mas é o que acontece.

Agora meu exemplo preferido, e na minha opinião o mais perigoso deles: Quando o estupro e o abuso em geral são romantizados, vendidos para adolescentes que passam a pensar que aquele é o “relacionamento dos sonhos”. Estou olhando pra vocês, Crepúsculo e 50 Tons de Cinza. É fato que (até onde eu lembro) não há estupro em Crepúsculo, mas em 50 Tons de Cinza tem e ambas as histórias mostram relacionamentos abusivos, não só mostram como romantizam, fazendo aquilo parecer “romântico”.

Há uma passagem no primeiro livro da trilogia de 50 Tons de Cinza (que foi cortada do filme, então se você só assistiu não vai saber) que Anastasia pede para Christian parar, fala que não quer e ele diz que vai amarra-la se ela continuar assim, claro que o livro é tão mal escrito e sem noção que faz Anastasia achar aquilo sexy, porque olha só como ele quer ficar com ela! Além disso, a relação é completamente abusiva, ele a convence das coisas mesmo ela dizendo que não quer, persegue ela até pra fora do estado, manipula ela a aceitar logo o contrato de BDSM, mesmo ela sabendo muito pouco sobre esse universo, diz o que ela deve comer e a obriga a usar anticoncepcional porque ele não gosta de camisinha (outro aspecto que não está no filme, que mostra ele usando camisinha), entre outros vários aspectos já falados mil vezes. Edward também persegue Bella, tem um ciúmes pouco saudável, diz pra ela ficar longe ou vai se machucar (também conhecido como “ninguém mandou, eu te avisei, a culpa é sua”)… Inclusive há um casal entre os lobisomens que um dos lobos machuca a esposa, deixando uma cicatriz no rosto dela e o evento todo é tratado como se fosse “Ah ele só perdeu o controle”. Eu entendo que ele é um lobisomem, mas aí a adolescente que namorar um garoto cis e for agredida pode pensar a mesma coisa e acreditar que está tudo bem.

Digo que essas são as mais perigosas porque elas fazem as mulheres acreditarem que o estupro que sofreram talvez não sejam estupro, que foi culpa dela, que ele não consegue se controlar, que é legal um namorado que te persegue e te quer tanto que ignora quando você diz não… Os meios de comunicação são muito fortes e formam opinião, não é por acaso que existe um filme chamado “O Quarto Poder” que fala da mídia.

Estupro não acontece pouco, é um medo constante das mulheres e ver o assunto ser representado de forma tão ruim nas mídias não só faz inúmeras pessoas se sentirem mal, mas como também passam ideias completamente erradas de um problema extremamente sério. Estupro é um recurso que deve ser usado na ficção com muito cuidado e poucas vezes, mas é tão banalizado que faz as pessoas que assistem nem acreditarem que aquilo é estupro.

Então não fique reclamando de alguém que desistiu de ver Game of Thrones, por exemplo, por causa dos estupros, porque tratar um assunto desses com o desrespeito que os produtores da série e outras pessoas tratam é uma ofensa. Essas representações apenas alimentam ainda mais a cultura do estupro (que é real sim e eu tô cansada de homem cis falando que isso não existe) e nós, mulheres, que temos que sentir na pele os resultados disso tudo.

5 comentários sobre “O problema do estupro na ficção

  1. Olá! Que texto fantástico, eu amei!
    Sobre Lolita, realmente uma jovem sedutora resolveu tudo né? “Ela provocou”. Por Deus… Os Hentais também são um desfavor. E sabemos o quanto isso fica no inconsciente coletivo de uma sociedade, ou melhor, o quanto ESTÁ.
    De crepúsculo, li a série quando adolescente, achei maravilhosa na época, viciei! Mas só hoje entendo seus (grandes, ENORMES) problemas. Não sei dizer com certeza se uma postura muito frequente que tive de me colocar como inferior em meus relacionamentos e aceitar diversas coisas que não quis em favor disso tem a ver com as influencias da adolescência, como crepúsculo, mas pode ser que tenha. Hoje entendo os perigos destas leituras para jovens.
    E sobre GOT, ainda acho que não havia como casar com o Ramsay sem sofrer estupro e barbaridades. O que as pessoas esperavam, que ele não fizesse nada? Fico indignada por isso ter sido usado basicamente como fortalecedor do Theon e indignada porque a Sansa não precisava disso, ela já tinha pago todos os pegados de 30 gerações, mas como fazer a equação fechar? Pfv, não me leve a mal, pelo contrário, me ajude a entender!!
    Bjão, você escreve muito bem, me fez refletir muito!

    http://www.vivendovivi.blogspot.com.br

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  2. Oi Viviane, tudo bom?
    Quanto ao caso de GOT, acho que a grande questão que deixou muita gente brava (eu incluída) é que isso não existia no livro. Sou super a favor de mudanças em adaptações, mas a Sansa do livro estava em um lugar “seguro” (entre aspas porque eu acho que pode piorar, mas por enquanto está tudo bem) e na série mudaram tudo para que ela ficasse no lugar de outra personagem menor, o que pro arco da Sansa não faz sentido em vários aspectos, principalmente porque como você disse, ela já tinha sofrido e no final da quarta temporada tinha se empoderado. A série tirou vários arcos com mulheres fortes (agora de imediato penso em três, mas deve ter mais) e não quis cortar essa parte. Na minha opinião a Sansa nem iria para Winterfell, mas supondo que realmente tivesse que acontecer, eu tentaria adiar o casamento. Os Bolton sabiam relativamente cedo que Stannis ia atacar Winterfell, então eles podiam decidir casar Sansa com Ramsay depois disso (só que aí ela e Theon já teriam fugido e a cena nunca aconteceria). Talvez Sansa reagindo de alguma forma? Dependendo de como fizessem, faria sentido com o ponto em que a personagem está.
    Obrigada pelo elogio, que bom que você gostou do texto! 😀

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  3. Oi Ca!!! Ótimo texto, muito coerente e bem amarrada suas ideias. É triste como a mídia faz assuntos pesados terem seu valor invertido. E isso acontece desde propagandas de filmes/séries/novelas… O tipo de sociedade que temos nos permite isso.

    Me lembro se uma pesquisa que dizia que sim, nossa sociedade é machista (até aí nada de novidade…), mas achei incrível quando mostraram a foto de uma moça com uma roupa bem curta, perguntando se ela “merecia”ser estuprada e a maioria dizer sim, fiquei mais assustada ainda quando disseram que a maioria dessa galera que disse “sim, ela merece ser estuprada” é de mulheres.

    Gente!!! Como isso pode ser possível??? Como alguém pode MERECER ser estuprada???

    Tratando ainda desse tema, mais antigo que 50 tons de cinza, é 9/2 Semanas de Amor, o que toca a música do Brian Farry, Salve to Love… Cara, a história é doentia, engloba desde uma mulher ser convencida de que vai gostar dessas novas práticas (tipo 50 tons de cinza, mas na década de 80 – o filme foi lançado em 1986), a prática de sexo com outra pessoa, na frente do par, para que ela sentisse ciúme. É uma história profundamente doente.

    Kim Basinger fez o papel principal, junto com Mickey Rourke, teve que fazer Suse um ano de análise para tirar traços de “obediência” que a personagem havia deixado…

    Mais uma vez Cá, seu texto é muito bom, uma crítica válida, que não pode parar… Parabéns!!!

    Bjãooooooo

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