Sandman é uma série de quadrinhos, escrita pelo Neil Gaiman, que foi lançada de 1989 até 1996. Os quadrinhos não seguem uma linha de história linear, mas giram ao redor do personagem Sonho, uma entidade que personifica exatamente essa ideia. Já fiz uma resenha aqui, sem spoilers, sobre o que achei da história, mas o texto aqui vai se focar em algo mais específico.
Uma das coisas que eu mais gosto, quando estou acompanhando alguma história, é reparar nos detalhes, tentar entender o simbolismo por trás de cada escolha, o que fez com que eu começasse a notar as tendências surrealistas na obra do Neil Gaiman.
O surrealismo surgiu na primeira metade do século XX, na França. O princípio básico das obras surrealistas é que a arte não devem vir da razão, moral ou preocupação estética, portanto a obra de arte seria, do ponto de vista dos surrealistas, o resultado do absurdo, das coisas ilógicas, como imagens que vemos nos sonhos.
Salvador Dalí, um dos artistas mais lembrados dessa época, diz que é preciso desacreditar da realidade tal como a percebemos para criar a obra de arte. Em uma das aulas de história de arte que tive na faculdade, o professor concluía, em sua concepção, que a arte era a forma do ser humano alcançar o subconsciente através do que fazia conscientemente, alcançar aquela coisa dentro de você que te emociona e faz sentido. Nessa interpretação da arte a linha surrealista se encaixa bem.
Como disse no vídeo que fiz sobre o Sandman, algo que sempre gosto no Neil Gaiman é como ele encaixa coisas consideradas absurdas no nosso mundo atual, sem maiores explicações, porque no contexto, por mais estranhas que sejam, elas farão sentido, assim como os relógios derretidos de Dalí fazem sentido dentro de seu quadro. Então agora senta comigo e vamos ver o que tem de tão surrealista em Sandman.
O surrealismo sempre menciona muito os sonhos que temos, então a ligação mais óbvia é o fato do personagem principal ser a própria personificação do sonho, mas não é só ele. Essa linha artística também tinha a tendência de tentar representar a loucura em suas obras, o delírio, que também recebe uma personificação nos quadrinhos na personagem Delírium.
Podemos pensar no fato do surrealismo usar, muitas vezes, uma realidade exagerada para formar algo irreal. Como assim? Vamos pensar em Sonho de novo, os sonhos que conhecemos são algo abstrato, que não entendemos e simplesmente aparecem em nossas mentes. Neil Gaiman resolve colocar um “rei” no “reino do sonhar”, que é a própria entidade sonho, tornando essa ideia em uma espécie de pessoa em um reino, uma ideia muito mais palpável. No reino do sonhar temos figuras histórias que vivem juntas, além de elementos mais fantasiosos, como o humor de Sonho mudando o clima do reino ou guardas de pedra que começam a se mexer quando alguém se aproxima desse território.
O surrealismo busca quebrar a “lógica racional” em toda a sua manifestação, e a personificação de conceitos como sonho, morte, destino, entre outros, seria essa quebra. Mas Neil Gaiman continua quebrando o que se esperaria dessas personificações. Sonho poderia ser um cara esperançoso, colorido e animado, mas seu personagem tem toda uma característica gótica, além de ser o perpétuo mais rabugento. Quando pensamos em uma personificação da morte, vem logo a mente uma pessoa velha e deprimida, quando a Morte na verdade é uma moça que se veste como uma adolescente punk, além de ser bem animada na maioria das vezes, também não vamos nos esquecer de Destino, que vê tudo, porém é cego. A personagem mais surrealista seria a própria Delirium, não só pela sua personificação, mas toda a construção da personagem é algo que desafia a lógica. As roupas, suas transformações repentinas em peixes coloridos ou outras coisas, seu jeito de falar, as cores e fontes usadas na arte do quadrinho quando ela aparece…
A intervenção fantasiosa do surrealismo é o aspecto mais presente. Sonho é capturado por um grupo no começo do quadrinho, precisa recuperar seus três itens sagrados, pode entrar no corpo das pessoas como quiser… Os personagens cruzam o tempo e espaço nessa história, com direito a uma bruxa revivendo um rosto morto e depois fazendo com que todos entrassem no sonho de outra personagem. Vários aspectos de Sandman, se contados assim, não vão fazer sentido para alguém que nunca leu, a pessoa que ouvir provavelmente vai falar “Nossa, que viagem!”, que é exatamente a ideia. Sandman não precisa seguir uma lógica, porque como já comentei antes algumas vezes, naquele universo isso faz sentido, mesmo que logicamente ninguém possa ressuscitar um rosto morto.
O surrealismo também junta elementos que são antagônicos e os colocam juntos. Isso aparece mais obviamente na própria ideia dos perpétuos. Veja, esses sete irmãos são entidades que sempre existiram e que estão em todo lugar, porém ao mesmo tempo eles têm um começo e fim. Depois de alguns volumes, descobrimos que em algum momento, uma das personificações de Desespero morreu e apareceu em outro “corpo”. Como pode uma coisa, literalmente perpétua, ter começo e fim? Logicamente não faz sentido. As ideias dos opostos também podem ser vistas na Morte, que passa mais tempo entre os vivos, de Sonho que interfere na realidade, de Desespero que só existe até certo ponto que a esperança dos humanos permite…
Há outra questão um pouco mais distante, porém que acho interessante trazer aqui. Na época, o surrealismo veio também como uma forma de quebrar as normas tradicionais da Europa na época. Entre valores tradicionais, podemos pensar nos que são relacionados a religiões. O que normalmente entendemos é que há algum tipo de força suprema que está, de certa forma, acima de nós. Na antiguidade, oferendas eram feitas aos deuses e hoje em dia várias pessoas se reúnem em templos de suas religiões para de certa forma homenagear essa existência. Aqui quero citar uma das falas mais marcantes da Morte:
“Quando a primeira coisa viva existiu, eu estava ali, esperando. Quando a última coisa viva morrer, meu trabalho estará
terminado. Colocarei as cadeiras em cima das mesas, desligarei as luzes e trancarei o universo atrás de mim quando partir”
Isso dá uma outra cara a ideia desses “seres superiores”. Os perpétuos não tem razão de ser ou de existir sem que existam coisas vivas que acreditem neles, que precisam deles. Aí trocamos, quebramos o padrão, Neil Gaiman sugere aqui que essas entidades são dependentes de nós, os “meros mortais”. Isso faz também ligação com outra questão apresentada no quadrinho, de que nós, os humanos, as coisas vivas, na verdade somos quem criamos esses seres superiores, e não o contrário.
Acho que isso é mais marcado quando vemos que, dependendo do arco e do protagonista da história em questão, os perpétuos aparecem com aparências e roupas diferentes, podendo até mudar o nome. Isso porque cada cultura tem sua forma de enxergar certas ideias e os perpétuos se moldam baseados nisso. Aliado a isso, também vemos que vários deuses de várias culturas coexistem ao mesmo tempo, temos Lúcifer junto com Loki e Thor. Isso volta pra questão da quebra de padrão, na Europa da época que o surrealismo surgiu, a religião católica era bem influente, e nessa crença acredita-se que qualquer outro deus, que não seja o deus da igreja católica, não exista. Ao colocar todas essas entidades juntas você não só quebra essa ideia como reforça a questão delas existirem porque várias culturas tem suas próprias crenças, então contato que alguém acredite, esse ser existirá.
Há também quebras de padrão mais técnicas em Sandman, mas que cabem no assunto. O estilo de desenho, cores e arte mudam dependendo do arco e do que está acontecendo, enquanto outros quadrinhos tentam manter um padrão e consolidar algum tipo de marca em sua obra. Além disso, Sandman não é uma história linear, os arcos acontecem em diferentes pontos da linha do tempo da história e não necessariamente possuem ligações um com os outros, que também quebra o padrão linear que a maioria das histórias têm.
Sandman é, de fato, uma história muito rica, isso é uma das muitas análises que podem ser feitas, e por ter tanto elementos podemos concordar ou não com essa ideia dos quadrinhos terem uma linha surrealista.
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