Autoinserção, criatividade e poder ser qualquer coisa

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Nesses últimos dias pesquisei muito sobre o termo Mary Sue por causa da polêmica da Rey, por causa disso acabei me deparando com outro tópico que resolvi falar sobre. Como já disse nesse texto, o termo Mary Sue é usado para personagens mulheres consideradas perfeitas, boas em tudo, já que as meninas que escreviam fanfics se autoinseriam como personagens sem defeitos em suas histórias. Fanfic, para quem não sabe, é quando um fã escreve alguma história em um universo ficcional que já existe.

Podemos fazer uma reflexão, que também vai fazer ligação com esse outro texto meu, sobre algo considerado “de mulher” ser ridicularizado, se a maioria das pessoas que escrevessem fanfics na época fossem homens e eles inserissem em suas histórias personagens como eles, talvez os termos Mary Sue e Gary Stu nunca tivessem existido. Mas já falei dessa questão no texto apontado aqui, o foco agora é falar sobre autoinserção.

Autoinserção é quando um escritor escreve um personagem que na verdade é ele mesmo. Isso não acontece só em fanfics, Tolkien admitiu que Faramir era o personagem que representava ele mesmo no mundo do Senhor dos Anéis.

Porém se pararmos pra pensar, a autoinserção é algo que pode acontecer de outras formas. Por exemplo, quando você joga um RPG, seja de mesa ou no videogame, e faz um personagem parecido com você fisicamente ou psicologicamente, isso é um tipo de autoinserção. Nos meus anos de fandom, fóruns e tumblr, percebi que não era incomum encontrar autoinserção de todas as formas: fanfics, jogos e em fanart.

O que ficou na minha cabeça depois de pesquisar sobre o termo Mary Sue é que, se poucas pessoas fizessem a tal da autoinserção, nunca teriam criado o termo e nem feito uma fanfic só para criticar a prática (óbvio que só as meninas que faziam isso eram o alvo da crítica né). Tanto isso quanto meus anos de fandom me mostram que a autoinserção não é algo incomum. Aí eu me perguntei: Mas por que as pessoas fazem isso

Quando pensei sobre escrever esse texto, comecei a pesquisar sobre o assunto para ver se encontrava alguma fonte que me apontasse o motivo das pessoas quererem se colocar nas ficções. Uma das coisas que me chamou atenção é que, ao contrário do que eu acreditava, não tinha muitos textos sobre o assunto. Os que encontrei era muito ligado ao termo Mary Sue e outros falavam de autoinserção como se fosse algo ruim.

Entre esses textos “contra” autoinserção, os argumentos eram que, se em um RPG você poderia ser qualquer coisa, por que escolher ser você mesmo? Outro dizia que se afastar do que você é aumenta a criatividade e ainda um terceiro argumento dizia que as pessoas que escreviam autoinserção é porque tinham dificuldade de escrever sobre o outro.

Nenhum desses argumentos me deixou muito feliz.

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Eu faço autoinserção desde que comecei a jogar e escrever. Quando joguei meu primeiro jogo com escolhas, Pokemon, colocava o meu nome na personagem e tomava as decisões que eu faria se estivesse na situação, ou pelo menos o que meu inglês da época conseguia entender. Algum tempo depois me interessei por escrita e, nas pastas mais sombrias do meu computador, dava pra encontrar várias fanfics com autoinserções minhas.

É verdade que há dez anos atrás eu não escrevia bem e provavelmente a autoinserção era a maneira mais segura de escrever pra mim, mas eu não posso fingir que isso não me ajudou a ser uma escritora melhor. Às vezes, quando tenho coragem, abro textos antigos, comparo com meus textos novos e consigo ver um avanço óbvio.

Quanto aos jogos, eu fui aprendendo a jogar mais estrategicamente e menos baseado no que eu faria, isso é outro fato, mas mesmo que de Pokemon de Gameboy eu tenha avançado para Dragon Age e Mass Effect nos consoles mais novos, eu continuo fazendo autoinserção. Sempre que começo um RPG novo, a primeira vez que jogo é uma versão minha naquele mundo ficcional. Depois eu jogo outras vezes criando personagens e interpretando, mas a primeira sempre precisa ser algum tipo de autoinserção. Nem precisa ir longe, há alguns dias atrás, quando estava fazendo meu personagem de Fallout 4, perguntei pro meu namorado se o rosto que tinha feito parecia com o meu.

Há alguns anos atrás comecei a participar ativamente de fandoms, aí percebi que outras pessoas faziam a mesma coisa que eu, jogavam primeiro com autoinserção e depois resolviam se distanciar mais. Não eram todos, mas mesmo os que faziam um personagem diferente, em algumas escolhas cruciais, acabavam escolhendo algo que eles mesmos fariam.

Bom, isso são os fatos, mas ainda não temos o motivo. Por que fazemos autoinserção? E isso é algo ruim, como diz os textos, ou não?

Não sou formada em psicologia ou nada parecido, mas como sou da área de comunicação, encontrei a resposta em um assunto que falo praticamente todo o dia. Representação.

No final das contas, por que representação é importante e nós brigamos tanto para tê-la? Porque queremos nos ver ali, saber que também existimos, que podemos fazer parte desses mundos incríveis e que podemos ser heróis da nossa própria maneira. Buscamos nos identificar, seja pelo gênero, cor da pele, orientação sexual ou até características do personagem. Queremos saber que podemos ser qualquer coisa.

338px-crystal_krisNão é por acaso que o jogo que marcou minha infância foi Pokemon Crystal, a primeira vez que eu podia ser menina, realmente colocar meu nome ali e jogar como eu mesma. Quando um RPG com criação de personagem está para sair, sempre buscamos saber se poderemos escolher características suficiente que façam com que nos identifiquemos com o personagem que estamos usando. E isso vale para quando escrevemos também e nos colocamos como personagem, tanto em histórias originais como fanfics.

É óbvio que há sim pessoas que vão questionar por que ser eles mesmos se podem ser outra coisa e jogam como outra coisa, cada um joga/escreve como quiser e todas as formas são válidas, mas ser algo diferente não significa que você não possa fazer autoinserção. Uma das pessoas que conheci no fandom de Dragon Age era uma moça negra e pansexual, quando ela foi criar uma autoinserção fez uma elfa maga. Parece não fazer sentido, mas no contexto do jogo era óbvio: Em Dragon Age, elfos sofrem preconceito por serem de uma raça considerada inferior aos humanos e ela dizia se identificar com essa história dos elfos. Ao mesmo tempo, ser mago nesse universo também é fazer parte de uma minoria, assim como ela era não só por ser negra, mas por fazer parte da comunidade LGBT+.

No meu caso, em Dragon Age, a autoinserção em geral era com personagens humanos, mas todos as minhas personagens eram diferentes das outras. Uma era bem prática e direta, a outra era valentona e brava enquanto a terceira buscava fazer tudo certo e resolver as coisas sem conflitos… E eu me via em todas elas, mesmo sendo tão diferentes, isso porque eu estava explorando várias partes de mim em cada uma delas. Isso cobre a o primeiro argumento, de poder ser algo diferente.

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Cordelia Trevelyan, minha autoinserção em Dragon Age Inquisition

Então chegando ao segundo argumento, sobre a criatividade, eu diria que depois de anos criando personagens rasos e até certo ponto Mary Sue, eu cheguei em um ponto que minha autoinserção me fazia refletir sobre diferentes características minhas, colocar isso no jogo ou no papel e ver como esse meu eu ficcional lida com a situação. Isso aguçou e muito minha criatividade, quando eu aprendo como vários aspectos da minha personalidade funcionam, eu posso começar a criar outras coisas.

Ano passado eu fiz um curso online chamado “Como Escrever Pessoas Trans” e aprendi com Alliah, em suas palavras, que: “Antes de escrever o outro, você precisa escrever você mesmo”. Precisamos nos conhecer, entender como funcionamos e só aí que poderemos partir para criar coisas novas. Com isso eu também acabo cobrindo o terceiro argumento, que talvez sim, autoinserção para algumas pessoas pode até ser porque não sabemos escrever o outro, mas é um passo para aprendermos.

A ficção em geral é algo que fascina os seres humanos há anos, pega algo no subconsciente, não é por acaso que certas histórias mudam a vida das pessoas. Quando amamos algo, queremos fazer parte daquele algo. Quando vivemos numa sociedade em que usamos uma máscara praticamente o tempo todo, calculando nossos passos e com medo de algo que nos atinja, muitas vezes nos escrever em um contexto diferente ou nos colocar em aventuras de um RPG pode ser libertador.

De certa forma é isso que a representação faz, uma de suas funções é exatamente nos mostra que podemos ser o comandante da nave espacial, o guerreiro lendário, o chefe do grupo rebelde. Uma pessoa como eu está ali fazendo aquilo então eu também posso fazer coisas incríveis, eu me identifico ali e tomo consciência de que eu existo como todo mundo e posso ser o que quiser. A graça da autoinserção está exatamente aí, em poder ser o protagonista e o herói e, ao contrário dos textos que encontrei, não leio isso como algo ruim ou “raso”, mas um exercício que pode ser desde divertido até empoderador.

3 comentários sobre “Autoinserção, criatividade e poder ser qualquer coisa

  1. Posso comentar? Posso, posso posso? *—*
    Amei esse texto. De verdura. Me lembrou o que eu mesma escrevi, Jogo de Afirmação de Papéis ( https://feliciagamingdiary.wordpress.com/2015/08/26/jogo-de-afirmacao-de-papeis/ ).

    Além disso eu só queria falar que esse argumento de “pq ser vc mesme se vc poder ser outra pessoa em jogos de rpg” me parece coisa de homem heterossexual que não está feliz com a própria vida, mas não sente necessidade de se representar.
    Eu já sofri bastante com isso jogando Vampiro: A Máscara.

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  2. Outra coisa q eu queria dizer, mas esqueci por estar sonolenta…
    Autoinserção pode acontecer de formas menos óbvias também.
    Eu estava escrevendo um romance pro NaNoWriMo do ano passado no qual haviam 3 protagonistas, e essas 3 representavam diferentes partes de mim mesma. E os diálogos que essas personagens tem são diálogos que aconteceram dentro da minha cabeça, comigo mesma, ou com pessoas próximas a mim.
    E é uma ficcão científica infantil baseada em digimon.
    então nem sempre é óbvio, mas é sim ótimo na grande maioria das vezes se autoinserir no seu próprio trabalho.

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