Problematizando a ficção

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Esses últimos dias foram bem complicados. Aconteceram várias polêmicas dentro do mundo nerd, desde a notícia de que a Rey foi tirada dos brinquedos intencionalmente até o salário injusto da Gillian Anderson.

Eu tive mais visualizações do que o normal com o meu último texto sobre as roupas das personagens ficcionais e recebi todo o tipo de feedback. A maioria foi positivo, mas como todo o assunto que pisa em calos, tive alguns negativos. Entre xingamentos e “argumentações” que tinham mais raiva do que lógica, vi um questionamento que achei interessante trazer para um novo texto.

Algumas pessoas questionaram qual era a importância de problematizar algo da ficção. Alguns desses questionamentos vieram como textos que buscavam desmerecer o feminismo. Isso não é uma resposta, eu não tenho intenção de discutir com quem possui a mente fechada e busca qualquer desculpa para desmerecer um movimento só porque se sente confortável na posição privilegiada da sociedade. Na verdade, esse texto é para as pessoas que estão dispostas a conversar sobre problematização, sobre coisas nerds em geral e buscar entender melhor o assunto.

Há vários sites e blogs de minorias questionando e criticando aspectos da cultura pop. Qual a importância disso? Será que é mesmo, como fui acusada, “falta do que fazer” ou realmente existe algo maior aí?

Para começar, acho importante entendermos a importância da ficção. Ela é uma das formas de se contar histórias, é algo imaginado, que não existe, mas sempre passa uma mensagem e pode refletir certas coisas da vida real. Essas histórias são veiculadas através dos meios de comunicação: livros, filmes, séries e até jogos.

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Os meios de comunicação são uma força poderosíssima na sociedade de hoje, através deles que conseguimos formar opiniões, fazer as pessoas acreditarem em algo, disseminar ideias, destruir reputações… No meu primeiro dia de aula na faculdade, os alunos de Jornalismo e de Rádio e TV tiveram que assistir um filme chamado O Quarto Poder do Costa-Gravas, que, na minha opinião, explica bem a força da mídia, mostrando um jornalista que transforma um fato mais ou menos importante em um grande circo. Os alunos de Jornalismo poderiam ter sido os únicos convidados a ver o filme, mas não é só o jornalismo que tem esse poder de transformar as coisas, é o audiovisual em geral também.

Quando cobramos de uma emissora grande que tenha ética a passar as notícias, é porque sabemos que o jeito que uma informação é passada é muito importante. Há uma grande diferença entre dizer “Vítima de estupro” e “Vítima de suposto estupro”. Pode não parecer, mas se a própria iluminação de um programa influencia as pessoas, a forma que as informações são passadas influenciam ainda mais. Não é à toa que o que acontece em novelas resulta em vários debates. A cena de estupro em Ligações Perigosas causou revolta, com toda a razão, é irresponsável mostrar uma violência dessas do jeito que foi mostrado. As novelas são tratadas com mais “seriedade” que as histórias do mundo nerd, mas no final do dia, ambas são ficções e ambas influenciam a vida das pessoas.

A partir de representações e mensagens passadas nas ficções, as pessoas podem moldar ideias, pensar sobre certos assuntos e ganharem força. Muita gente já ouviu a história da Whoopi Goldberg, que sentiu que “podia ser o que quisesse” quando viu Uhura em Star Trek na televisão. Além disso, quantas mulheres não se sentiram representadas na trajetória de Jessica Jones? Quantos adolescentes não viram Korra e Asami ficarem juntas e descobriram que não tem problema não ser hétero? Representação importa, mensagens em obras ficcionais importam. A arte fala com partes muito íntimas dentro de nós, é natural que elas tenham impacto nas nossas vidas.

Tudo bem, já falamos sobre ficção, agora vamos pensar um pouco sobre a problematização.

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Problematizar alguma coisa é quando olhamos algo e questionamos aspectos do que estamos analisando, levantando debates sobre o assunto. Quando participamos de um movimento social, a problematização se torna parte da rotina, porque precisamos reavaliar coisas na sociedade com as quais estávamos acostumados antes.

Muito se questiona sobre os limites da problematização. Eu também acredito que há certos limites, cada caso é um caso, é difícil dizer até onde podemos ir quando cada coisa é de um jeito. A problematização pode ser feita em qualquer área, mas nesse texto eu vou me focar em quando nós problematizamos obras de ficção no mundo nerd de qualquer mídia.

Então tá, se estabelecemos que a ficção é importante para a sociedade, tanto para criar o debate sobre certos assuntos como na parte da representação, então as obras ficcionais da cultura pop se tornam passíveis de se problematizar. A arte e a mídia possuem papéis importantes na sociedade, mas como todo o produto desta, ambos são feitos em um contexto machista, racista, transfóbico, etc. Portanto não são livres de problemas.

Quando criamos um jogo, um quadrinho ou qualquer outro tipo de história que objetifica a mulher sem nenhuma crítica, só para atrair público, nós perpetuamos a ideia de que a mulher está ali para ser objeto. Quando fazemos um filme que mostra pessoas LGBT+ como promíscuas ou vetores de doença, estamos fortalecendo um estereótipo danoso da sociedade. Quando romantizamos um relacionamento abusivo, criamos a ideia de que aquele tipo de relacionamento é certo, afinal de contas, você viu isso na televisão, não é?

Pode não parecer, mas os meios de comunicação possuem esse poder de guiar o pensamento das pessoas. Isso quer dizer que precisamos banir tudo que possui alguma coisa problemática? Esse é um tópico mais delicado, mas minha resposta imediata é não e eu vou explicar porque eu penso assim. Agora é uma ótima hora de dizer que: O que falei até agora são como as coisas acontecem, agora o que você vai fazer diante da problematização é algo completamente pessoal, eu não tenho uma resposta exata, ninguém pode te dizer o que é certo ou não fazer, só você pode decidir qual forma de agir é melhor para você.

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Vamos voltar ao limite da problematização. É algo que não é unânime, mas vou exemplificar o que é, pra mim, o limite em problematizar algo ficcional.

Vou usar o Snape, de Harry Potter, como exemplo aqui. Ele é um personagem muito amado, mas existe várias problematizações sobre ele ser um professor abusivo e sobre o jeito que tratou Lily. Você pode problematizar aspectos de um personagem da ficção, até aí está ótimo, o que eu acho que é o limite é você dizer “O Snape era um professor abusivo, portanto, se você gosta dele, você está apoiando professores que são abusivos com seus alunos”.

Gostamos de personagens por inúmeros motivos. Sim, quando apoiamos um político é porque concordamos com pelo menos boa parte do que ele fala, mas personagens da ficção não são pessoas reais, então nosso “gostar” deles é diferente de quando gostamos de alguém real. No caso do Snape, podemos gostar dele porque ele é um personagem complexo, bem construído ou porque gostamos do estilo anti-herói. Há quem goste dele porque já gostava do ator antes de ver Harry Potter. Também existem pessoas que gostam dele porque se identificam, ele não é perfeito, mas sofreu muito bullying e quem passou por isso pode se identificar com a história do personagem. Da mesma forma que alguém pode se sentir desconfortável com o personagem por ter sido abusado por um professor.

O que eu quero dizer com isso é: Você pode gostar de uma história, de um personagem ou qualquer outra coisa ficcional e ainda sim reconhecer seus erros, só boicotando se você preferir assim. Até porque é bem provável que a maioria esmagadora das obras ficcionais tenham algo problemático de alguma forma. Já conheci muitas moças, feministas inclusive, que gostavam do Coringa, isso quer dizer que elas apoiam relacionamentos abusivos? Não. Elas podem gostar dele porque gostam de vilões. Eu mesma gosto de vários vilões, como o Darth Vader, e nem por isso sou a favor de sistemas políticos parecidos com o Império.

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Quem estava por aqui no ano passado, durante a quinta temporada de Game of Thrones, sabe que, ao mesmo tempo que eu gosto da história (apesar da série ter caído muito no meu conceito), sou a primeira a criticar algo que considero errado. Eu sou uma mulher que ainda gosta de Game of Thrones, no meu caso gosto porque, não só esse ambiente fantástico medieval me agrada, mas admiro a forma que George R. R. Martin constrói os personagens, mas particularmente o que mais gosto na saga é como ela dá espaço para teorias, isso pra mim conta bastante. Eu consigo ver Game of Thrones e criticar mesmo assim, agora e a moça que tem trigger com cenas de estupro? Ano passado recebi vários comentários de mulheres que largaram a série e inclusive me agradeceram pelas críticas, porque elas queriam saber o que estava acontecendo, mas não conseguiam assistir. Quem tomou a atitude mais certa, eu ou elas? Não tem um certo e errado, cada um lida com essas problematizações da melhor forma pra si.

Então sim, vamos continuar problematizando, sempre vai ter alguém para desmerecer isso, mas acontece, é da vida. A problematização enriquece o debate, nos faz pensar fora da caixa, você não precisa fazer isso toda hora também, problematizar não é algo que é sempre fácil e ninguém precisa fazer isso 24h por dia. Você pode curtir as suas histórias preferidas sem desmerecer o sentimento alheio. Você pode parar de acompanhar alguma história porque os aspectos problemáticos te incomodam de alguma forma, mas você também pode curtir algo ficcional mesmo reconhecendo os fatores problemáticos.

O importante é que nós estejamos dispostos a problematizar, ou pelo menos permitir que os outros problematizem (afinal não conhecemos tudo e nem nos sentimos a vontade falando de tudo), porque, como já apontei lá em cima, essas histórias importam. Você pode sim achar a roupa da Arlequina ou da Laura bonita, querer fazer cosplay das duas e se empolgar para ver Esquadrão Suicida e jogar Street Fighter V, o que não é legal é desmerecer todas as críticas que foram feitas sobre as roupas das personagens e suas motivações. Você também não precisa concordar com o que as críticas falam, mas é importante estar aberto para falar sobre, aceitar outras opiniões, e não reduzir essas críticas com “é bobagem”. Não é, ficção está longe de ser bobagem.

2 comentários sobre “Problematizando a ficção

  1. Oi Clarice 🙂
    Adorei esse texto e todos os outros que li (muitos). Eles me ajudaram a organizar tudo aquilo que eu já pensava a respeito, foi ótimo. Obrigada pela “ajuda”.
    E mais uma coisa: o teu português é simplesmente ma-ra-vi-lho-so!!! Que delícia ler um texto bem escrito. Parabéns!
    Abração 🙂

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  2. Excelente texto.

    Eu passo muito tempo da minha vida sendo zoado pois eu levanto pontos de problematização a respeito dos filmes que vejo com meus amigos, como “olha lá o cara que não sabe se divertir”, mas pessoalmente eu acho que problematizar a história é muito diferente de não gostar dela. Não vejo filmes para concordar com eles, vejo para me divertir, mas enquanto me divirto, ainda sim gosto de refletir com os temas da obra e achar mensagens nela, e muitas vezes filmes muito divertidos tem mensagens problemáticas, o que não significa que a gente não possa continuar se divertindo, mas acho legal não ignorar a parte problemática, falar sobre essas coisas e não deixar passar batido.

    Eu pessoalmente prefiro personagens complexos que façam coisas muito condenáveis com uma construção do caminho que os levou a tais ações do que personagens com os quais eu concordo o tempo inteiro. E gosto de após o filme apontar o quão condenável é a ação do personagem. Acho problematizar uma atividade saudável, até para forçar a reflexão e o debate quanto ao assunto e a normalização do assunto pela maneira como a obra o passou.

    Parabéns pelo texto.

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