Eu sei que eu provavelmente estou entrando naquele território “perigoso” do mundo nerd. A Rebeca Puig (Collant sem Decote) e eu sempre falamos sobre como os fãs machistas de jogos são os piores, então pode ser cutucar a onça com vara curta falar, não de qualquer jogo, mas de um clássico dos videogames. Mas eu também sou fã de jogos e é meu espaço poder falar sobre eles, seja para elogiar ou criticar.
Ano passado foi anunciado o remake de Final Fantasy VII e eu nem conseguia explicar minha empolgação. Não tive PlayStation na época em que o jogo bombou, então tudo que joguei e vi era na casa de amigos enquanto eles jogavam. Isso junto com um inglês bem limitado, fez com que anos depois eu revisitasse os títulos da franquia que não pude aproveitar tanto, o VII incluído.
Final Fantasy VII é um clássico, um marco nos videogames, não só em jogabilidade, mas em história. Na época os críticos diziam que o jogo estava muito a frente de seu tempo. Até hoje Cloud é um dos personagens mais conhecidos de Final Fantasy e dos jogos em geral (e esse texto explica o quão importante ele foi e ainda é).
Dito isso, considerando ser um JRPG de 1997, não é de se surpreender que hoje vejamos problemas que não víamos antes. Quando começamos a problematizar as coisas, um passo importante é olharmos tudo aquilo que gostamos e entender pontos que não nos incomodávamos antes ou não percebíamos.
Quando comecei a listar, vi que FFVII tinha vários problemas. Acho que ninguém precisa excluir um jogo de 97 de suas boas memórias (a menos que queira) por causa disso, mas considerando que ele terá um remake nos tempos de hoje, época em que os debates sobre representação nos jogos estão tão em alta, é importante olharmos esses fatores. Eu sei que todo mundo quer ver um FFVII igual ao antigo com a mecânica melhorada, mas repetir momentos problemáticos do jogo, novamente, numa época que se fala tanto disso, é um tanto quanto irresponsável.
Eu particularmente gosto quando o remake realmente tem algo novo a apresentar. Tirando algumas cenas específicas (como o Honey Bee Inn), acho que vão ignorar os preconceitos do jogo e repetir a história fielmente, e por mais que a gamer em mim comemore a chance de ter a experiência que não pode ter na época, a feminista não consegue olhar pra certas coisas e achar que tá tudo bem.
Então vamos aos pontos. Final Fantasy VII é um jogo com vários aspectos machistas, boa parte de suas personagens mulheres (se não todas) caem em algum estereótipo ou são mal representadas de alguma forma. Pode parecer que não, afinal Tifa e Aerith são duas das personagens mulheres mais conhecidas entre os fãs de jogos, mas elas infelizmente não escapam.
Primeiramente, dos nove personagens com que podemos jogar, apenas três são mulheres e uma morre enquanto outra nem é obrigatória para recrutar, que é a Yuffie. Assim como Elena, as duas são apresentadas no jogo como personagens mais irritantes, no caso de Elena é um pouco pior porque ela é mostrada no jogo como incompetente em seu trabalho. Além disso, uma das duas pode ser raptada durante o jogo e Cloud precisa salvá-las.
A Shera pra mim é um dos piores casos. A personagem é uma cientista que dedica sua vida a ajudar Cid, até se colocando em situações de risco por ele. Cid tinha o sonho de ir para o espaço, mas teve que escolher entre fazer o foguete voar e salvar Shera. Ele escolhe salvá-la, mas depois disso começa a tratá-la muito mal porque ela é “responsável” por ele ter perdido seu sonho. Não satisfeito com esse relacionamento abusivo, o jogo mostra Shera aceitando isso, afinal ela se sente culpada e acha que merece. Em nenhum momento o jogo tenta abordar o assunto de relacionamentos abusivos de forma consciente, só está lá, e como Cid é um dos protagonistas a narrativa acaba passando pano nele.
Eu sei que agora, que vou falar sobre a Tifa, muitos vão pensar “Ah, mas ela luta! Ela sai do estereótipo de maga e curandeira das mulheres de Final Fantasy” e isso é muito verdade. Assim como Yuffie, Tifa é uma das moças que chuta bunda e isso é bem legal, é uma das minhas preferidas de FFVII inclusive, mas nem tudo são flores. Primeiro pela roupa (lá vou eu falar de roupa de novo) que é obviamente feita para o olhar masculino, além das proporções do corpo dela serem absurdas. Apesar de em muitos pontos Tifa ser uma personagem muito legal, ela está ali para o desenvolvimento de Cloud. Quando ele fica ferido, ela vai cuidar dele e sem o protagonista, a importância dela no jogo diminui. Não só isso, mas quando Sephiroth destrói a cidade natal dela, o jogo se foca muito mais na reação de Cloud, como ele está se sentindo, etc. Ela fica de luto e até tenta alguma vingança, mas só para ficar ferida e ser salva por Cloud de novo, depois disso o assunto meio que desaparece. Mais um caso de colocar a mulher pra sofrer para falar do homem.
Falando em colocar a mulher pra sofrer, vamos falar de um dos maiores casos de “mulher na geladeira” dos jogos. Aerith também tem várias características legais, ela não é colocada em roupas absurdas para agradar o olhar masculino, ela é corajosa, se arrisca e salva muita gente durante o jogo. Assim como Tifa, apesar das qualidades, a personagem tem seus problemas. Primeiro porque ela é a eterna “donzela em perigo”, sempre precisando ser salva e fisicamente mais fraca que os outros personagens. Depois que a relação dela com Cloud sempre me pareceu estranha, ela promete que se Cloud salvá-la, irá em um encontro com ele. Quando o protagonista a machuca por estar possuído por Sephiroth, ela não tem nenhum momento que teme Cloud ou algo que mostre ela lidando com o assunto, além de ela se aproximar dele porque Cloud a lembrava de Zack, seu antigo namorado. Bom, o resto todo mundo já sabe, Aerith morre e isso se torna o combustível que Cloud precisava para enfrentar Sephiroth.
Tem como consertar essas coisas? A maioria é fácil, fazer umas mudanças em Yuffie e Elena, ou pelo menos em uma delas, porque o problema não é uma mulher ser irritante ou incompetente, o problema é só ter essa opção. Shera pode perceber o mal que Cid faz e se afastar dele, os outros personagens podiam repreender Cid pelo que ele faz. Refazer a roupa de Tifa é o mais fácil, em Advent Children já teve uma melhora. O sofrimento de Tifa podia ser mais explorado em sua personagem e mostrado como algo dela, não uma coisa para alimentar Cloud como personagem. No caso a Aerith é um pouco mais complicado, a morte dela é um marco no jogo, talvez se as outras questões problemáticas da sua personagem fossem corrigidas, a morte seria menos “mulher na geladeira”. No The Mary Sue sugeriram que Cloud poderia morrer no lugar de Aerith, mas não acredito que a Square Enix faria isso.
Quando estava pesquisando para o texto, vi também pessoas falando sobre o racismo com Barrett e discussões sobre a transfobia na cena do Honey Bee Inn (além de uma cena que dá muito a entender que Cloud sofreu abuso). Não é meu local de fala, mas quis mencionar porque são outras problemáticas além do machismo que também precisam ser observadas.
É preciso considerar essas questões, eu entendo que o jogo é de 97 e o debate dessas coisas não tinha a força que tem hoje, mas o remake está sendo feito 20 anos depois e não se pode ignorar isso. Seria muito legal e interessante se a Square Enix buscasse reavaliar e consertar os erros que fez na época, mas eu também sei que isso causaria muita briga e eu não sei se a empresa estaria disposta. Eu vou jogar de qualquer forma e, por mim, as mudanças devem ser feitas, o principal da história não vai ser perdido e continuará sendo um jogo incrível, mas até lá muito ainda vai acontecer, né?