O texto contém spoilers de Until Dawn.
Essa reflexão de hoje começou com esse texto que está nos meus favoritos e com alguma frequência abro para ler de novo. Alguns dias depois voltei a pensar no assunto quando assisti Garota Sombria Caminha pela Noite. Certos eventos pessoais e coisas que observei mais a fundo na ficção me fizeram cada vez mais pensar nesse tema, até que hoje resolvi fazer um texto, meio desabafo, sobre isso.
Recentemente, como vocês sabem, zerei Until Dawn, um jogo de terror. Apesar de ter gostado bastante do jogo, um ponto importante da narrativa me incomodou bastante e tem tudo a ver com o assunto em questão.
Em Until Dawn, Hannah é apaixonada por Mike. Ela fazia testes em revistas adolescentes para ver se conseguiria ficar com ele, escreveu sobre ele em seu diário e até fez uma tatuagem pra provar o quão “cool” ela era. Os amigos deles descobriram dessa queda que Hannah tinha por Mike e, como ele tinha uma namorada, Emily, eles resolveram fazer uma brincadeira de mau gosto: Fazer Mike fingir que eles iam ficar juntos para gravarem Hannah tirando a roupa. Independente deles terem intenção de divulgar ou não, isso é exposição.
Resultado: Hannah foge, sua irmã gêmea, Beth, vai atrás, as duas caem de um penhasco e são dadas como desaparecidas. Durante o jogo descobrimos que Beth morreu, mas Hannah sobreviveu e como não conseguiu sair das minas em que caiu, precisou comer o corpo morto da irmã pra sobreviver, o que a transformou em um Wendigo. Eu só conseguia pensar em como não era justa essa história, Hannah era uma moça ingênua, que confiava e amava Mike e por querer ter algo com ele, acabou caindo de um penhasco e se tornando em um monstro.
Infelizmente Hannah não é a única que passa por isso. Como já comentei aqui no blog, Lucy, de Drácula, também foi punida por… Ter mais de um pretendente? Flertar? No texto da Verberenas que citei no começo também temos o exemplo da Medusa. Angela em Silent Hill 2 é punida por ter matado um homem que a agrediu e a estuprou por anos. Yae de Fatal Frame enlouqueceu e se matou anos depois de ter fugido da vila que ia matá-la, como punição por ser uma adolescente que ficou com medo e fugiu sem a irmã. Isso sem contar as inúmeras personagens que sofreram só pelo fato de exerceram suas sexualidades.
Todas sabemos dos estereótipos da “mulher correta” que é a única a sobreviver no final dos horríveis eventos da história de terror, um estereótipo de mulher santa que não é torturada, que não morre e pode escapar. Mas eu quero falar das mulheres que saem do padrão, que são punidas, possuídas, torturadas, descartadas e vítimas de uma ótica patriarcal.
E aí eu comecei a pensar o que exatamente era esse “padrão” que a mulher tinha que estar para sobreviver durante a noite de terror. Isso tudo me fez lembrar de um outro texto meu onde falo que as vilãs sempre são mais odiadas que os vilões. Isso não é exclusividade das vilãs, e aí chegamos no ponto que nem de personagens ficcionais isso é exclusividade. Quando comecei a puxar essa linha de pensamento, cheguei a conclusão assustadora que não é nem a questão da mulher ter uma atitude ruim que a faz ser crucificada.
Quando a mulher tem uma atitude humana, ela se torna um monstro.
Isso foi literalmente uma frase que eu disse a um tempo atrás no meio de uma discussão. Ela me saiu tão natural que o baque até me deixou chocada por um tempo. O episódio que me causou essa reação era mais ou menos assim: Um homem e uma mulher, ele traia e manipulava a parceira, ele cometia erro atrás de erro e sempre era perdoado, ele deu esperança falsa pra mais de uma moça. Ele era humano, ele errou e ele podia melhorar. Ela foi compreensiva, ela tentou ajudar o cara pela conversa, sem julgamentos, por mais que ela achasse as atitudes dele erradas. Em um momento que uma discussão pegou em um ponto extremamente pessoal dela, ela aumentou o tom de voz e se defendeu de certas acusações. Na próxima vez que ela viu os amigos, ela ficou sabendo que ele a tinha chamado de louca, descontrolada, que chegou a “assustá-lo” e de repente, em uma reação humana, ela virou um monstro.
Quando algo acontece com o filho de um casal, é sempre pela mãe que perguntam e se a culpa é do pai (e precisa ser provada), é sempre “Ai coitado, acontece”. Uma mulher não pode nem dizer que não gosta de ser mãe sem ser apedrejada. Uma mulher não pode ter desejos sexuais, os filmes de terror nos ensinaram que essas são as primeiras a serem possuídas ou mortas. Uma mulher não pode ser grosseira e se exaltar que ela não merece perdão. Uma mulher também não pode ser burra e ingênua, porque ela vai ser punida por isso. A culpa é sempre da mulher, da mãe, da irmã.
Apesar de morrer de medo, eu tenho uma curiosidade gigantesca com histórias de terror, adoro os mitos e as lendas. Como diz no texto do Verberenas, eu não quero mais ver mulheres sendo punidas por terem atitudes que nos homens são consideradas normais. Eu não quero padrões patriarcais dizendo quem sobrevive na casa mal assombrada e quem foge.
A mulher só é permitida ser robô ou monstro, se você segue o padrão que foi programada para seguir, perfeito, você é aceita, se não tudo bem também, você tem espaço, mas vai ser tratada como menos que humana. Os padrões que nos são impostos são humanamente impossíveis, na história da humanidade mulheres foram acusadas de bruxarias e queimadas vivas por muito pouco. Mulheres foram internadas por serem “histéricas”, quantas delas não desistiram de ficarem quietas diante dos abusos do marido e foram parar no hospital por isso?
Podemos também parar pra pensar no significado do monstro. Afinal, o que os monstros na ficção representam? Eles são imagens do que a humanidade teme virar, não é à toa que numa época de tecnologia e que tanto se fala sobre alienação, um dos monstros mais populares seja o zumbi. Então será que essas mulheres que são punidas por pouco, seja pela monstruosidade ou pela morte, é um reflexo do que a sociedade patriarcal teme? Será que na verdade uma sociedade com bases machistas tema mulheres que saíam da programação que eles tentam nos colocar?
Victor Frankstein chamou sua Criatura de monstro, aquele ser que ele construiu e fez do jeito que desejava era, supostamente, o monstro, mas nós sabemos que Frankstein é uma história que desafia a ideia de monstro e humano. A sociedade cria um padrão para mulheres e as que escapam são monstros, mas pela lógica de Frankstein, os monstros são esses que nos impõe padrões, que abusam, que nos estupram e matam. Mas quando o homem faz isso, tadinho, foi um erro, ele é humano, porque o homem pode ter sua humanidade, ele pode errar e ele merece perdão.
Eu não quero que todas as histórias de terror parem de fazer mulheres como vilãs ou monstros, até porque a ideia da moça que não faz nada de errado é outro estereótipo. O que eu quero é que as mulheres na ficção, e fora dela, tenham direito a serem complicadas, com vários tons de cinzas e, acima de tudo, humanas. Muitas vezes os personagens mais interessantes são aqueles que não são 100% bonzinhos, e na vida nenhum de nós tem teto de vidro, então vamos permitir que essa humanidade que é permitida ao homem seja passada para mulher também.
Quando digo isso eu sei que não é de repente que isso vai mudar, sei que machistas não passarão a nos ver como humanas que merecem respeito do nada. Eu quero sim que a representatividade da mulher no terror, e em toda a ficção, saia desses estereótipos que dizem o que podemos ser ou não, afinal a arte é um reflexo da nossa realidade, mas acima de tudo eu quero que mulheres reais não se deixem enganar quando homens a chamam de descontroladas, violentas, grossas e loucas. Por que nós sempre temos que nos controlar? Pra não deixar o “monstro” sair?
Chega de ser robô, quero ser humana, mesmo que me vejam como monstro.