O universo de Battle Royale

Battle Royale é um livro do autor japonês Koushun Takami, lançado em 1999. Mais tarde, a história foi adaptada para o cinema e também rendeu 15 volumes de mangá.

A história se passa em um futuro não muito distante em que o Japão, conhecido como a Grande República do Leste Asiático, aprova o ATO BR para impedir que a sociedade se rebele contra o governo. Essa lei diz que todo o ano será sorteada uma sala de uma escola, com adolescentes entre 15 a 16 anos, que será colocada em uma ilha. De 42 alunos, apenas 1 pode sair vivo.

Parece familiar, não? Jogos Vorazes possui muitos elementos similares e ambas as histórias fizeram bastante sucesso. Há muitos coisas e mensagens que podem ser analisadas em Battle Royale.

Caso não tenha visto o filme ou lido o mangá e o livro, sugiro que pare de ler aqui. Recomendo bastante a história, apesar das minhas reclamações e do conteúdo forte. Aviso de conteúdo: sangue, violência, abuso sexual e estupro (só no mangá, no livro e no filme eles não chegam a acontecer).

Aviso de spoilers.

Battle Royale é controverso, uma história que fala de adolescentes se matando, de uma maneira muito mais crua que Jogos Vorazes, conseguiu muitos fãs e também muitas pessoas que odiassem a obra. Apesar de vários pontos negativos, também existem muitos positivos e que podem ser discutidos.

Em 1997 o livro foi enviado para a competição japonesa Grand Prix Horror Novel, uma competição de livros de terror. O Japão sempre foi um país que mandou bem nesse gênero, jogos como Silent Hill e Fatal Frame vem de lá, assim como os filmes O Chamado e O Grito. Talvez você não consiga imaginar Battle Royale como uma história de terror, mas ela possui elementos do gênero, então é uma pena que o livro não tenha ganhado nenhum dos prêmios na época.

As histórias de terror mexem com os medos da audiência. Os elementos mais comuns são o escuro, fantasmas, espíritos, monstros, assassinos em série e até elementos mais relacionados ao gore. Por mais que não tomemos nenhum susto assistindo Battle Royale, os elementos de terror não se limitam às mortes e ao sangue.

Battle Royale trata de uma questão que já tinha sido trazida com o Senhor das Moscas (apesar de serem histórias bem diferentes), que é a questão da crueldade humana e o ponto em que chegamos para nos salvar. Não dá para apontar para qualquer um daqueles adolescentes e dizer que eles são pessoas horríveis, mas muitos deles entram de cabeça no jogo para matar seus colegas se isso garantir suas próprias vidas. É ruim pensar que seu melhor amigo podia atirar em você se precisasse, mas talvez seja pior ainda pensar que você mesmo seria capaz de fazer isso.

Não é por acaso que sejam adolescentes em um ambiente escolar. O período da escola não é uma boa época para várias pessoas, o bullying por parte de outros alunos e às vezes até maus tratos dos próprios professores pode fazer a experiência escolar de muitos ser uma espécie de Battle Royale, lutando pela própria sobrevivência todos os dias.

Há também uma crueldade real em Battle Royale. Uma das justificativas dadas para o ATO BR funcionar é que os adolescentes precisam saber desde cedo que não podem confiar em ninguém e que o mundo é cruel. Por mais absurdo que seja a tentativa de “ensino”, não é uma visão completamente deturpada do mundo. Pessoas traem, machucam, destroem e matam, o mundo é bom para uma minoria que vive numa bolha. Assassinato, mortes, fome, estupros, violência… Sair dessa bolha segura e dar de cara com essa crueldade dá medo, Battle Royale mostra o lado feio do mundo e do ser humano.

O choque é crucial para que a história funcione. A maioria dos personagens são adolescentes que se matam, desde suicídio até momentos bem violentos, até com tentativa de estupro. Nós vemos crianças como seres inocentes, tentamos protegê-las das maldades do mundo, então uma história de repente pega 42 delas e coloca numa situação sem filtros, sem proteção. Boa parte deles concordam e matam seus colegas, Kazuo Kiriyama reúne todo o seu grupo e os executa, Mitsuko Souma também mata boa parte dos jogadores, além de usar de sua sexualidade para sobreviver ao jogo.

Porém muitas vezes ficamos mais chocados quando essas atitudes vem das crianças “boazinhas”. Kazuo e Mitsuko são mostrados como “vilões” desde cedo, muito mais chocante é quando as amigas que estão se refugiando no farol se matam por pura desconfiança. Até as garotas que decidiram não participar da matança acabam sendo forçadas a jogar pelo medo. Além disso, muitos personagens morrem quando estão quase conseguindo realizar alguma coisa, mesmo os mais cativantes acabam caindo no final.

Battle Royale critica o governo e figuras de autoridade, coloca um personagem considerado “rebelde” como o protagonista, Shuya gosta de rock, o que não parece ser comum na época, fica indignado com a injustiça e tem sonhos de uma vida melhor. Acredito que essa escolha tenha sido feita para fazer críticas aos padrões impostos pela sociedade. Ao mesmo tempo, em sua rebeldia, Shuya é uma escolha quase conservadora de “fora do padrão”, quase como se fosse um “rebelde aceitável”. Mimura se rebela bem mais, inclusive é dito que membros de sua família foram perseguidos pelo governo. Garotas como Mitsuko, Hirono e Takako também são bem mais fora do padrão que Shuya e até o próprio Kawada. Ele é um bom exemplo de herói: Corajoso, simpático, indignado com injustiças… Mas como rebelde, Shuya não chega a ser tanto. Não sei dizer se isso teria sido só uma escolha conservadora do autor ou uma questão que no contexto do Japão da década de 90 faça mais sentido.

A outra protagonista é Noriko, e aqui aproveitamos para apontar os defeitos da história. Enquanto Shuya seria, de certa forma, um símbolo da rebeldia, Noriko é um exemplo de uma “moça direita”. Ela é sempre mostrada quase como uma personagem “pura”, que precisa não só de um, mas dois homens para defendê-la. Ela é forte no que acredita, mas é um pouco incômodo ver que a personagem escolhida para “sobreviver” é uma menina padrão que sem Shuya ou Kawada, nunca teria saído viva do jogo.

Apesar disso, o livro mostra garotas diferentes. Noriko é mais indefesa, Yukie é uma líder, Yukiko e Yumiko lutam pelo que acreditam, Mitsuko e Hirono são figuras intimidadoras, Takako é provavelmente a que tem a atitude mais forte dentre as garotas, Yoshimi é “maria vai com as outras”… Enfim, mostrar garotas diferentes é sempre bom, elas não são todas garotas assustadas e cópias umas das outras. Porém ainda há momentos que suas representações falham.

Em geral, acredito que o livro (e o filme, porque é uma adaptação bem fiel) trate as garotas melhor. Apesar de muitas terem mais visibilidade no mangá (como Kayoko e Yoshimi), elas não são sexualizadas. Inclusive no próprio mangá existe uma cena de estupro que não acontece, ou pelo menos não é mencionada no livro. A gangue das “garotas malvadas” (Mitsuko, Hirono e Yoshimi) se prostituem com alguma frequência. Isso já é uma noção ruim, o grupo considerado “malvado” são as que se prostituem e usam drogas. De qualquer forma, enquanto o livro faz referências, o mangá faz questão de ser bem mais gráfico.

Mitsuko é um caso muito infeliz. Em todas as versões, Mitsuko sofreu abuso sexual durante sua infância, em vários momentos diferentes, que fez com que ela se tornasse uma pessoa manipuladora, que usa drogas e não tem amigos. Muita coisa me incomoda em sua caracterização, ela é colocada como vilã. Entendo que a história quer chocar e é triste, o problema não é, necessariamente, os resultados do abuso que ela passou, mas como é mostrado, como ela se torna a vilã e facilmente uma das personagens mais odiadas.

Mas o mangá… Ah, o mangá vai bem mais fundo. Os autores dessa adaptação acertaram em mostrar mais dos personagens do que era mostrado no livro, o que deu mais profundidade para os adolescentes e em muitos momentos ajudou a mostrar a crueldade da situação através dos traços. Mangás são conhecidos por seus exageros, alguns dos mais violentos sendo banhos de sangue. Porém em Battle Royale as mulheres são bem mais sexualizadas, e em Mitsuko a sexualidade e a violência andam lado a lado. Mitsuko aparece nua em vários momentos, aparece fazendo sexo com meninos e inclusive mata um deles com a foice durante o processo. Além disso, no mangá ela é caracterizada como “louca” pelos seus traumas e muitas dessas cenas são sexualizadas, como quando Mitsuko está fora de si enquanto tira a roupa para seduzir Kazuo. Mizuno fica louca durante o jogo e sua última cena é nua.

Não são só com as meninas que esse tratamento de pessoas neurodivergentes é mal feito. O grande vilão, Kazuo, é um deles e, apesar de não fazer o que faz por pura maldade, ele é colocado no lugar do vilão, inclusive sua condição seria o grande “motivo” pelo qual ele é colocado nessa posição. Nesse caso, isso acontece em todas as mídias. Pra fechar com as reclamações, o único personagem gay, Sho, é viciado em álcool e cigarros, frequenta um bar gay constantemente e esses fatores são bem mais reforçados no mangá.

Por outro lado, vemos uma coisa que muitas vezes não vemos, que é uma mulher lutando de igual para igual contra um homem numa tentativa de estupro. Takako é atacada por Niida, que tenta estupra-la, porém ela consegue lutar e inclusive matá-lo. Tanto no livro quanto mangá o colocam no lugar do vilão e durante o filme a tentativa de estupro dele é quase patética.

Battle Royale comete seus erros e não é referência em representatividade, infelizmente, porém ele trás reflexões sobre a humanidade, sobre figuras de autoridade e medos que talvez nós não tenhamos considerado antes. Battle Royale provoca reflexões, mesmo com seus erros, que de forma nenhuma devem ser esquecidos, porém é uma história que te faz pensar, seja no próprio livro, como em um mangá que foca mais nas reações dos alunos ou um filme que tenta ser mais fiel ao original.

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